A carta

Querido amigo,

Entrei sem bater, e te procurei. A sala estava vazia, o quarto também. Então o cheiro do café recém passado impregnou minhas narinas, fazendo com que eu fosse até a cozinha para encontrar o bule na cafeteira ainda, meio vazio. Pensei comigo mesma, que talvez, numa mera possibilidade, você soubesse que eu apareceria de surpresa e deixou o café ali para que meu jejum fosse quebrado. Encostei o dedo no vidro, e notei que ainda estava quente. Peguei uma xícara do armário, sua xícara favorita, espero que não se importe. Havia um pote de geléia em cima da mesa, sujei a espátula limpa que estava recostada na borda do prato com uma fatia de pão de fôrma, também em cima da mesa. Comi o pão com geléia, e levei a xícara comigo.

Dirigi-me novamente à sala. Notei a poeira bastante espessa por cima dos móveis, o que deixava o ar também bastante empoeirado, então abri a janela para deixar o sol entrar. A luz que adentrava o cômodo brincava com a poeira que se estabanou no que a cortina fora aberta, e foi nesse ambiente que perambulei mais um tanto, entrando nessa brincadeira de poeira que não quer baixar. Olhei, demorada e detalhadamente cada foto em cima do balcão encostado na parede. Li seu bloco de recados e mexi na antena da televisão, me desculpe. Não era minha intenção adentrar tanto assim na tua privacidade, nem tinha esse direito. Estava prestes a dar meia volta em direção à cozinha quando notei o corredor. Nunca me ocorreu que aquele corredor fosse tão escuro.

Fui até ele, e não foi preciso tatear as paredes para achar o interruptor. A escuridão que tomou conta do meu ser era por demais reconfortante, mais do que eu achava que realmente seria. Deus, aquele corredor guarda tanto quanto um livro de memórias! O breu acalentou e, previamente, testemunhou do mais simples amor inúmeras vezes. Guarda rostos em breves passagens em busca do novo. Guarda, também, o que nunca fora dito por falta de necessidade. Nem sempre se faz uso das palavras para dizer alguma coisa, certas pessoas não precisam disso. Eu e você éramos exemplos vivos disso, mesmo naquela escuridão embriagadora. Os olhos se conheciam, e qualquer coisa além disso era futilidade. Era, passado, passei, voltei.

Ao retornar para a sala, deixando o corredor, sua escuridão, seu passado e as vagas lembranças pra trás, notei que a poeira havia baixado e parado de brincar com a luz que ainda invadia o local através do vidro da janela. Será que cansaram de esperar por mim, assim como aconteceu com você? Tomei seu lugar no sofá por alguns instantes, e o corredor teimava em me prender. Decidi ir, de vez, sem deixar vestígios que não fossem pela tua xícara predileta - me desculpe por isso, assim como pelo resto -, prato e bule, agora vazios, e a espátula suja na pia. Corri os olhos pelo cômodo, ainda vazio, e impregnado pelo cheiro da poeira e do seu perfume. Minha mente encaixou fragmentos do que jamais ousou existir naquele pedaço escuro de sua moradia.

Levantei-me. Escrevi uma breve palavra naquele bloco marcado por sua letra, já disse que não precisa apertar tanto a caneta contra o papel. Por sua teimosia, acabei por descobrir o que não queria. Repousei a chave que usei para roubar seu espaço, ainda que sem bater, pois nunca fora de meu feitio usá-la. Andei até a janela, e abri o vidro para revigorar o ar e não deixar traços de que usufrui da sua falta para acomodar minhas lembranças. Seu perfume contra o meu, sua pele contra a minha eram coisas que não mais existiam. Fui até a cozinha, e lavei a louça que usei. Coloquei o prato onde o encontrei com uma outra fatia de pão, e a espátula também. Notei que a xícara estava trincada - teria sido eu em momento de descuido? Será que seus olhos notariam tal deformidade? Coloquei-a de volta em seu lugar de descanso.

Perceberá, também, que falta um filtro de café dentro da caixa. Marquei mais um xis em vermelho no calendário da cozinha, acima do dia de hoje, como é de praxe quando mais de um filtro é usado. Coloquei pó de café e água nos espaços designados na cafeteira. Sim, deixei café pronto para suprir sua necessidade mais tarde. Abri a porta apenas o tanto que era suficiente para que meu corpo passasse, e hesitei em fechá-la, em deixar tudo aquilo pra trás. Mas era preciso fazê-lo, mais dia, menos dia.

Ao regressar de onde quer que tenha ido, terá um ar renovado, sem resquícios de minha presença em sua vida. Terás esquecido que temo a escuridão que ainda banha parte de mim, e que você, por breves momentos, iluminou com sua breve passagem pela minha vida. Sem poeira para chacoalhar, sem nada. Espero, de todo o meu coração, que volte renovado e que tenha deixado de lado todas as tuas aflições que, naquele dia, fizeram com que eu me afastasse. Desculpe-me, não só por roubar e fazer uso de sua vida durante sua ausência, mas também por não ter força o suficiente para ficar ao seu lado.

Quero que você volte, que sinta esse ar e que lembre de tudo assim como aquelas quatro paredes.
Quero que você volte, seja quando for ainda que só para dizer adeus. Descobri que é isso o que realmente deseja.

Muito obrigada pelo café. Tenha uma boa vida.


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