No mesmo lugar (inacabado)

Bati à porta. Esperei o mordomo me atender e, ao contrário do esperado, foi o próprio Diabo quem me atendeu. Com tamanha humildade, o exato oposto do que eu esperava encontrar em um lugar como aquele, ele me fitou surpreso. Aquele olhar atravessava meu ser, e eu não estava nem um pouco incomodada. Talvez a surpresa dele fosse ainda maior do que a minha, já que era óbvio que não deveria estar lá... Pelo menos, não ainda. Sabe-se lá aonde a vida ainda há de me levar, mas de uma coisa tenho certeza: não entrei naquele lugar por ter sido o primeiro abrigo que surgiu em meio à tempestade. A escolha foi minuciosa ao longo do caminho.

Ele deu um passo para trás e escancarou a porta para que eu pudesse passar. Não consegui nem hesitar, minhas pernas não responderam aos comandos neurológicos para ficarem paradas. Entrei, e entrei com o pé esquerdo. Já que era pra dar errado, que desse errado logo de início. É aquela velha história, “já que ta no inferno, abraça o Diabo”. Se existe alguma razão para ter lembrado de tal dito popular, não sei, mas abri meus braços e aguardei alguns instantes. O olhar em minha direção havia passado de surpresa para preocupação, e eu me deleitava por dentro. Ele retribuiu os braços abertos timidamente, coisa que não se espera de uma besta como aquela. A aura cor de fogo que emanava daquele ser era tão gélida quanto um iceberg. Separamos nossos corpos, e eu sorri. Esperava ao menos um sorriso de retribuição, mas ao invés disso, mais preocupação no olhar.

Ele me deu as costas. Saiu andando e, de repente, não estava mais lá. Não o vi passando por nenhuma porta, talvez estivesse distraída demais com tamanha ironia. Por que o Diabo estaria tão preocupado com a minha falta de fé? Ele deveria estar dando pulos de alegria por receber a visita de uma cética. Ou, talvez, um tanto puto por eu ser apenas mais uma no meio de tantos que já deviam ter dado as caras por lá. O fato é que a situação toda, além de irônica, foi um tanto intrigante. Fiquei parada observando a ante sala até que um espectro veio e me mandou segui-lo.

Fui ordenada para ficar à vontade, e assim o fiz. Ofereceram-me o melhor quarto, com a melhor vista para o mar. Sim, o Diabo vive bem melhor do que se imagina. Nada de labaredas, rios de lava e calor exaustivo. Senti como se estivesse em uma hospedaria, já que recebi instruções sobre como funciona a piscina interna, e sobre os horários do serviço de camareira e serviço de quarto caso desejasse ficar em meus aposentos. Eu ri. Assim que o espectro saiu, decidi desbravar aquele lugar como se não houvesse amanhã e, de todo, não estava errada. Entrei em uma ala um tanto curiosa para uma casa que tinha aquele ser como dono: a Ala dos Catorze. Quando ouvi a porta se fechar atrás de mim – a porta não estava lá antes, não que eu houvesse percebido -, pensei com meus botões, “Porra, devia ter pedido tele-entrega de pizza”.

Quando dei por mim, estava em um corredor largo o suficiente para caber três ônibus e sobrar um pouco de espaço. O piso era formado por três carreiras de lajotas: transparentes ao centro, branca à direita e preta à esquerda. Assim que pensei em pisar na lajota transparente, no maior estilo Shakespeareano “quando não se sabe para onde está indo, qualquer lugar servirá”, fui surpreendida por um papel surgindo no chão à minha frente. Nele dizia que equilíbrio era necessário em cada passo para o (meu) regresso. Julguei (de maneira errônea) que esse “equilíbrio” era me manter em apenas uma cor de lajota, qual fosse a que eu escolhesse antes de pisar.

Dei o primeiro passo em direção às lajotas transparentes (nada melhor do que ficar em cima do muro quando não se tem certeza) e algo me disse que, de fato, talvez não houvesse amanhã. A lajota mudou de cor, e em um piscar de olhos me vi em um corredor completamente escuro. Olhei por cima do ombro, para tentar perceber alguma porta e, um tanto chocada, me vi antes de pisar na lajota então transparente e com o papel na mão. Tornei a fitar o longo corredor à minha frente e, ao fundo, um par de olhos vermelhos me observava. Dei o primeiro passo, e pareceu ser o primeiro de muitos por vir.

Minhas roupas deram lugar à minha pele. Estava nua em pelo e coberta de cortes abertos. Outro papel apareceu em minhas mãos, e nele dizia que para curar aquelas feridas eu precisava transcender. Pensei, mais uma vez, com meus botões. Quando se transcende do inferno, para onde se vai? Purgatório? Pouco provável, mas aparentemente eu estava prestes a descobrir, se tivesse sorte. Dei mais alguns passos e lâmpadas dicróicas ligaram-se automaticamente, iluminando algumas pinturas. Contei cada foco de luz antes de dar mais algum passo, eram sete deles. Respirei fundo e me arrependi amargamente logo em seguida, pois todas as feridas começaram a latejar, parecia que eu havia mergulhado em uma piscina de álcool com sal.

Passo

Às vezes chegamos tão perto de alcançarmos nossos objetivos que começamos a acreditar tão fortemente que somos intocáveis, que nada nos impedirá de chegarmos onde queremos, que esquecemos que a estrada que trilhamos tem curvas. Curvas que são traiçoeiras e quase nunca nos deixam saber ao certo o que está por vir. Que mudam o fluxo dos acontecimentos de uma hora pra outra.

Nenhum ser humano é perfeito. No balanço do mundo em que vivemos temos de aprender que existem vitórias e derrotas, como existem também aqueles momentos de realização absoluta e os de miséria imesurável. São estas fases que nos fazem ésspas capazes de lidar com o mais difícil dos obstáculos, de vibrar com as conquistas e aprender com as perdas.

Derrota é, em uma verdade bem pura, inexistente. Nada mais é do que uma palavra criada para expressar uma não-vitória completa, na falta de descrição mais plausível. Isto acontece com todos e cada um de nós em alguma fase da vida (ou em todas), mas não podemos nos deixar abalar. Por não ser uma perda total, temos que sair de cabeça erguida e sempre olhando adiante, por mais difícil que seja no início. Nâo vai ser a única nem a última vez que isso acontecerá e por mais que seja impossível prever, precisamos estar preparados para tudo na vida.

Nunca esqueçam: não existe derrota até perdermos para nós mesmos.

Carta a um coração distante

O melhor dia da semana é o dia cinza. Pode ser dia útil ou final de semana, não importa. Tudo parece ser mais cru, monocromático, simples, real. Mas há um porém: as pessoas que vivem estes dias acabam virando potes-de-açúcar sem tampa. Se tornam heremitas por falta de opção, acreditando que estes tais dias cinzas são importantes para introspecção, alguns têm coragem chamar de dias IN (in casa, inbaixo de cobertas com o controle remoto da televisão à mão, intragáveis, insuportáveis.), o que é muita pretensão e banalização junto. Pessoas-potes pegam um livro, prontas para infiltrar cultura cérebro adentro e absorver estórias das quais sequer presenciaram, sem se darem por conta que um dia cinza vai muito além de cultura por ocasião.

Pessoas-potes não gostam de companhia nestes dias, e acreditam em quaisquer besteiras que lhes contam. “Não posso porque tá chovendo” é o bordão mais usado pelas pessoas mais ousadas. Estas são apenas cristais de açúcar espalhados em uma mesa úmida. Tal qual o período da noite, as distâncias são maiores ainda, o medo de um dia sem o astro-rei é quase congênito como se alguém tivesse ligado uma lâmpada fluorescente no céu com uma camada de tule e gaze pra não existir iluminação direta. Eu não entendo, realmente não entendo porque estas pessoas acham que dias cinzas é sinônimo de solidão. Será que sou eu quem está com a visão distorcida da realidade?... Não, não pode ser. Mesmo que cada pessoa tenha uma realidade que pertença somente à si e que relações interpessoais façam parte do imaginário coletivo, essa teoria é inaceitável, incabível.

Meus dias cinzas são mais do que dias de céu encoberto e sol escondido. As cores vibram à meia-luz, os mais variados aromas impregnam as narinas sutilmente, toda comida tem um sabor distinto, os decibéis extrapolam o limite e as texturas são mais exatas ainda que esteja tocando um pedaço de vidro. Cheiro de concreto molhado não necessariamente me agrada, mas o cheiro da chuva... Ah! Aquele cheirinho de chuva que tantas lembranças e expectativas traz. É um bem maior, uma ausência física suprida seja ao observar o lado de fora quanto sentir as poças d'água nos pés, os pingos nos ombros, o cheiro característico de dia chuvoso, o gosto de cada gota em uma gargalhada contra o vento.

Assim como eu observo, a chuva também me observa. E crava na minha pele, sempre que possível, uma falta imaginária de distância como se fosse teu sorriso, um afago trazido até mim via air shipping. Um cheiro no cangote, um beijo delicado no ombro. Um olhar de reprovação, uma mordida no lábio. Um gemido fraco que suplica por carinho, “um riso incontido” na sequência. Respiração pesada, pálpebras cerradas. Dormir de conchinha com quem se gosta e, até, um eventual empurrão que vem junto com uma tentativa – frustrada – de roubar o cobertor.

Tudo isso tem um sentido diferente por causa do esforço feito para diminuir a distância, ainda que não saibamos o que o tempo nos reserva. Tua presença longínqua se reafirma nestes dias cinzas. Em alguma hora de algum dia, tua ausência esvaece e faz tudo em meu mundo ficar melhor, mais belo.

Assim como saber que o que faz o deserto ser lindo é saber que ele esconde um poço n'algum lugar, o que faz meus dias cinzas é pura e simplesmente a tua companhia mesmo a um oceano de distância.


Grass

Since I was little, I hear people say "the grass is always greener on the other side of the fence" and when I finally understood the meaning of it, I realized it's actually true. We never really look at what we have the same way we look at what other people have and for quite some time, it was pretty normal to me.

But then, a few days ago while driving somewhere with my boyfriend, it occured me: what happens when you get to cross that fence and eventually reaches the other side? What's supposed to happen when you get there? Will you look at your accomplishments with different eyes or everything will stay the same? And when you look up to someone for everything they've done and their accomplishments, and you get to that exact same point, what happens next?

From the way I see it, you need to start over. You go back to that point you were before, where the grass was always greener on the other side of the fence. It's a vicious circle, no matter what we do and we don't know where to stop... Or where it starts, even. You keep wanting more, you're never satisfied. You want everything.

What is everything? Is it the irony in life when someone gets ahead of you by doing something you weren't bold enough to do? Everything should mean all that you have or need instead of everything you want, because like Mick Jagger once said, "you can't always get what you want". But then, greed covers your eyes in a way that makes it impossible for you to see that even if you mean it with all your heart.

Your grass is greener than others, my friend. That much I learned. So cherish what you already have, and remember "if you try sometime you just might find you get what you need" 'cause someday everything you archieved might suddenly vanish or mean nothing to you anymore, and there's nothing you can do about it. But keep in your heart that your grass should be always greener for you, no matter what.


Preto não é cor e luz não é branca

Tratava-se de um papel com palavras rebuscadas, incompreensíveis às vezes. Dona Amália revirava o papel de um lado a outro, confusão instaurada em seus olhos. Deixei-a com seu desassossego e sua afilhada na cozinha e direcionei-me até a sala, analisando o cômodo em seus mínimos detalhes. Fiquei estarrecida ao perceber a infinita quantidade de bibelôs de porcelana irritantemente organizados por ordem de tamanho - como se não bastasse, organizados também em ordem cromática – na prateleira de mogno que fazia a volta completa nas paredes daquela sala. A sensação de estar dentro de um arco-íris quebrável definitivamente estava longe de ser a melhor mas procurei não deixar isso transparecer quando avistei a dona da casa caminhando pelo corredor em minha direção. Lembrei-me de todas as vezes que estive na casa quando era criança, e todas as vezes que minhas mãos chegaram a formigar de vontade de derrubar pelo menos um daqueles bibelôs. Esqueci por completo o motivo da minha visita ao relembrar todo o esforço para ficar sozinha naquela sala, sem supervisão de um adulto. Agora lá estava eu, a trabalho, sem supervisão de nenhum adulto além da minha própria, ou seja, por descargo de consciência que não tinha mais cinco anos, mantive minhas mãos nas costas.

Com a penumbra do corredor, só consegui enxergar que ela ainda estava meio perturbada quando chegou na sala. Seu rosto iluminou, parecia estar feliz por seus bibelôs não terem sofrido nenhum tipo de atentado nas mãos da criança mais peralta da rua que hoje, vinte anos depois, não era mais assim tão peralta. Dona Amália riu, talvez tenha se lembrado dessas tantas vezes que minhas mãozinhas coçaram para causar o maior alvoroço naquela sala, e fez com que eu a acompanhasse até o outro lado da sala para nos sentarmos no sofá. Contou-me sobre suas viagens para a Europa e Ásia, e sobre seu fascínio pela Índia. Não pude deixar de pensar na novela das oito e ri baixinho, ironizando a ironia de quem sempre disse que a moda da massa não deve ser seguida. Lembranças, lembranças e negócios a parte, resolvemos entrar no mérito da minha ida até lá.

- Querida, você sabe que os indianos adoram cor, não sabe?

Dona Amália agora folheava o mostruário de cores com maestria, me deixando um pouco tonta. Mostrava cores aqui e acolá, colocava o pequeno livro contra a parede e olhava maravilhada quando estava satisfeita ou parecendo que haviam jogado um holofote ligado em sua direção depois de ter dilatado as pupilas quando, de fato, a cor doía nos olhos.

- Vó! Vovó! Essa côi é feia. - Nerissa, sua bisneta, entrou correndo na sala esparramando um resto de miojo do potinho por todo o carpete. - Pega um ósa! Ósa é bonita, côi de moxinha. E pêto, vó! Pêto pá ficá cheio de gamur.

Peguei a Dona Amália de surpresa, e morro de orgulho por isso porque no meu tempo, não tinha vizinha mais carrancuda do que ela. Cara, a coroa quase pirou quando viu aquele monte de massa marcar caminho no tapete que tava com cheirinho de limpo, mas se derreteu quando a guriazinha disse que rosa é cor de mocinha e que a “paiede ósa vai xumi casruga da vó”. Quase estourei rindo, tu não tem noção! Só não estourei porque, ao ver a cara dela quando notou o tapete manchado de molho de tomate, fiquei com medo de morrer de rir e que ela é quem fosse puxar meu pé no Além. Fiquei sabendo uns dias depois que foram lá para fazer a temática indiana e que, na hora de começar, ela mudou de ideia porque a bisneta a convenceu que “Ósa e pêto é bunito zunto, fica xisgue no útimo degau e é puio gamur.”

'Tão tá, né!


(In)verso

A fotografia retrata a honra da tradição sendo passada de pai para filha. O colo guardo na lembrança remota da memória falha daqueles tempos que não são tão tempos assim, mas as alfinetadas de saudade são constantes e não me deixam esquecer que tanto o colo quanto o velho fazem falta. Fui instruída a saborear o chimarrão, não a prepará-lo mas como sou atrevida, resolvi me dar uma lição.

No dia de hoje comemoro meu primeiro chimarrão. Pode não ter ficado uma bebida dos deuses, mas também não me saí tão mal assim. O velho ficaria orgulhoso, apesar de um pouco irritado por causa da bomba que insiste em não se ajeitar e entupir. Parece certo de que a recompensa por essa pequena vitória seria um sorriso e um colo e um pequeno pedaço de mim ficou esperando por isso mas quando dei por mim, estavam o chimarrão pronto, a térmica, Rilke e suas cartas a um jovem poeta, uma carteira de cigarros e eu, fitando um prato com migalhas de bolo de milho que formavam acidentalmente a letra "U".

Então, me dei conta que preciso parar de esperar por esses colos. Eles já estiveram lá e sempre estarão, ainda que a parte física seja de ausências. Ao observar a foto com cuidado e tentando um desapego ainda que impossivelmente indolor, o anseio de ter aquele colo novamente deu lugar a vontade de passar adiante o que me ensinou o velho, com tanto carinho e paciência. Vontade de ser o colo, de ser as mãos da segurança sem segurar, de ser a ternura do olhar.

De ser, somente. E vibrar silenciosamente com o primeiro ronco do primeiro chimarrão junto com quem toma conta do colo.


Outro lugar

O vento fugiu da cadeira que ele estava na nuvem.
&
Preciso hoje de alegria geral.


Tudo ou nada

A salvação está aqui.
Em uma falta de tudo, o nada.
Perfeição que não cabe, líquida.
Veio tudo abaixo.


Suspiro

Choro no escuro por temer a luz, e teus olhos.
Prefiro solidão ao abrigo dos teus braços.
Não sou de ferro como me pintam,
em gélidas cores no teu muro em ruínas milenares.
Rio na luz por temer que estes breves instantes
sejam tragados por tua sombra enquanto suspiras.


Você já olhou pro lado hoje?

Ei, ei! você aí! É sim, você mesmo, estou falando com você. Pode me dar alguns minutos da sua atenção por favor? Obrigada.

Agora que tenho sua atenção, peço que pare e pense na sua vida. parou? pensou? muito bem. Então pare e pense na vida do outro. Enquanto você está sentado lendo isso, debaixo de um teto, de banho tomado, vestindo uma roupinha que você acha mais-ou-menos, com chinelinhos ou sapatos nos pés, estômago forrado (ou não, mas você vai acabar fazendo alguma refeição hoje) e reclamando de problemas mínimos como não saber o que fazer no final de semana - mesmo que a semana tenha recém começado-, existe outra pessoa igualzinha a você e que não está debaixo de um teto por não ter pra onde voltar, não toma banho há um bom tempo, está mesmo vestindo uma roupinha mais-ou-menos, provavelmente sem nada nos pés, sem comer há uns dois dias e reclamando que pessoas como você não dão valor pro que têm. aliás, iguaizinhas a nós.

Pensou em alguém, não pensou? Agora imagine coloque-se no seguinte cenário: aquele banco da praça onde aquele morador de rua sempre deita, é a sua cama, o lugarzinho aconchegante onde você descansa. Aquela pessoa que passa por você e te olha com indiferença, é de quem você depende pra ganhar algum dinheiro, seja pra comer ou beber um pouco de água. Aquele chinelo nos pés desta pessoa, nesse instante, lhe parecem bem mais confortáveis do que o concreto. Aquele casaquinho com um furo na barra poderia te aquecer um pouco mais do que se abraçar no meio da noite ao deitar no banco da praça simplesmente para esperar o novo dia e o lugar pra onde esta pessoa está indo, certamente lhe daria um pouco mais de abrigo.

(Pode sair da cena agora. Se o seu coração apertou por dois segundos que seja, é porque ainda lhe resta um pouco de humanidade e você está apto a continuar lendo este texto. Se você foi aquela pessoa que olhou com indiferença e sentiu tal e qual, aconselho que pare por aqui pois este assunto não lhe interessa.)

Compreendo plenamente que você tem os seus problemas para cuidar afinal de contas, também tenho os meus, mas preciso que você abra o coração e a mente, e que cogite a possibilidade de que estas pessoas (moradores de rua, os indígenas que ficam pelas ruas - falando de santa maria) não são um problema, mas a situação delas é e nós não necessariamente contribuímos muito para uma melhoria. Até as pessoas que moram na periferia, em situação deplorável... Elas não são o problema, e sim a situação. Entidades sociais que não conseguem muito apoio, a situação nesses casos tabém é um problema.

Como disse Geoffrey do Toms Shoes, direto do South Africa Shoe Drop '07: "enquanto você lê isso, os bravos, os ousados, os brilhantes estão reconstruindo o planeta. Movimentos em massa estão surgindo, fazendo com que pessoas em todos os continentes se movam na mesma direção - longe das eras das cinzas, onde as pessoas viam o certo e o errado em tons monocromáticos. Longe dos manipuladores que se escoderam atrás de um segredo que já não serve pra nada enquanto violam esta linda raça humana e fazem dela submissa. Desculpe, pessoas malvadas, tenho boas e más notícias para vocês. Qual querem primeiro? A má, ok... Nós vimos o seu segredo. Podemos sentir o fedor das suas táticas de medo. Não seremos mais submissos. A boa notícia é que seus filhos terão chance de viver. De serem felizes e se realizarem como pessoas. Não é fantástico?!"

E então, quem aí tem esperança e se propõe a doar um pouco?


Flipping the bird

Pessoas desprovidas de capacidade pensante são sempre comparadas à animais, alguém já notou isso? É burro pra cá, asno pra lá, mula pro outro lado... Credo, a família dos equídeos em peso! E bem, essa capacidade pensante da qual me refiro não é inteligência já que existem sim pessoas inteligentes com preguiça de sobra de pensar (acredite, conheço aos montes - inclusive eu) e na mesma proporção - senão em maior porcentagem, existem pessoas que além de não serem mais inteligentes que uma ameba, têm preguiça de pensar. E são essas que são invejadas no reino animal por pertencerem à duas espécies ao mesmo tempo.

Ontem à noite me peguei pensando nisso, de chamar pessoas ignorantes de burras ou antas, etc. Acho que é válido dizer que é uma ofensa para os pobres dos animais pois, afinal de contas, eles não têm escolha de serem irracionais e nós, como a raça mais desenvolvida, temos. Além de que ser chamado de mula é um elogio, já que são seres híbridos... Mas ainda assim, optamos sermos incapazes de pensar seja antes de agir ou falar alguma coisa, ou qualquer coisa do tipo. parece que ser mais fácil do que fazer um esforço para retirar as viseiras de cavalo e exergar "além do que se vê".

Com a menção das viseiras de cavalo, fica um tanto duvidoso quem pertence a qual família e quem não pertence. Cavalos selvagens não usam essa viseira, por exemplo, então têm uma visão mais ampla da situação. Já os domados (os que usam a viseira, no caso) vêem só o que lhes é imposto por alguém mais esperto, digamos assim. Se for comparar equídeos com hominídeos, a diferença é pouca já que alguns hominídeos são burros, relincham (falta de comunicação) e "soltam as patas". A única diferença mais gritante é - bem, além de equídeos terem os dentes da Hilary Duff e andarem de quatro por toda a vida - que eles agem por instinto e nós, ignorância.

Quem disse "ignorância é uma virtude" merece troféu joinha de todos os tempos, de verdade. Esta frase nos coloca, honorariamente, em talvez mais de dez espécies diferentes dentro de duas famílias sendo que, cientificamente, deveríamos fazer parte de apenas uma ou talvez, duas... Porém, os macacos estão longe de serem parecidos com cavalos. Observe: o grande empecilho da ignorância humana é a tal da viseira. Ela deixa apenas a ponta do nosso nariz à mostra impedindo que olhemos pro lado e, consequentemente, não nos deixando ver que a situação mais além do que é permitido enxergar. Se conseguíssemos, por pouco tempo que seja, retirar a viseira, poderíamos agir como os reais seres humanos que somos, aliando o instinto para quando for conveniente. Só que isso está longe de acontecer.

Teoricamente, é impossível sermos tão burros (por mais burros que sejamos) a ponto de não querermos tomar conta de toda a classificação científica. Nenhum outro animal consegue isso com tanta maestria sem usar inteligência alguma! Como eu disse: é só na teoria. Humanos deveriam ser humanos, e agirem como manda a cartilha de conduta social e deixarem de incorporar outros animais simplesmente por sermos racionais. Tendo porcos como animais anatomicamente mais parecidos conosco e ainda querendo sermos o que não somos, fica difícil.


Anjo de quem?

Anteontem, depois de jantar com o meu namorado, fui na farmácia porque precisava comprar sabonete, desodorante e anticoncepcional. Compras do mês, ainda que a pasta de dente e uma escova de dentes nova tenha ficado pra depois. Bom, cheguei no estabelecimento lutando contra mim mesma, fazendo malabares com uma garrafa de 600ml de Coca-Cola e um cachorro-quente 3/4 comido. Queria fazer a compra logo e voltar pra casa, a caminhada até o ginásio onde meu namorado dá aula de futsal mais o fim de tarde no café com duas amigas - regada a croquetes, cerveja e um churrasquinho de saideira - estavam começando a pesar um pouquinho demais nas minhas pernas. Tudo o que eu queria era, pelo menos, uma cadeira decente!

Depois que consegui parar de lutar contra mim mesma (e saí vitoriosa, pasme!) e dar fim aos malabares, fui até o balcão dos remédios e notei que os três farmacêuticos estavam ocupados. Ótimo [not], tudo o que eu tinha que fazer era esperar.

- Fulano, vem aqui! - gritou o atendente que estava ocupado.

Sem brincadeira, eu dei um pulo tamanho foi o susto. O cara estava na minha frente e consegui a proeza de me assustar com ele... Ou com a voz dele, não lembro. Enfim, veio o tal "Fulano". Vou fazer que nem nas revistas que publicam histórias cabeludas das leitoras e não vou dizer nem o nome do farmacêutico, nem a farmácia. Eis que para a minha surpresa, salta uma pulga de trás do balcão, uma pulga aparentemente feliz de trabalhar até tão tarde. Bom, eu até trabalharia período integral caso a grana fosse boa, mas isso não vem ao caso agora. Voltemos a pulga.

- Oi, meu anjo, o que era pra ti?

Demorei alguns bons segundos digerindo o que tinha acabado de ouvir. "Ah, deve ter escapado. Vou pegar as coisas pra poder ir pra casa de uma vez>", pensei. Dei um sorrisinho pro Fulano e tentei ser o mais afável possível e relevar o deslize do rapaz.

Comprei o anticoncepcional e estava quase encerrando o pedido quando lembrei dos outros dois itens. Que erro bem estúpido, deveria ter me contentado com as pílulas... A coisa degringolou e os três minutos seguintes que fiquei lá dentro fui perseguida pelo Fulano que, pelo que entendi, queria que eu levasse a farmácia na bolsa. Tudo bem que aminha bolsa é grande, mas não é pra exagerar.

Perseguida e chamada de "meu anjo" a cada 30 segundos. Olha, eu tenho paciência de jó com quem trabalha no comércio, mas o fulaninho resolveu que era dia de arriscar a sorte. Naquela altura do campeonato só faltava o sabonete (já que passei a mão no primeiro desodorante que estava ao alcance), e eu estava quase agarrando o mais caro com todas as minhas forças só para me livrar daquilo logo. Porém, minha paciência beirou o esgotamento quando ele decidiu mostrar os sabonetes em promoção, e que o pacote com sei-lá-quantos sabonetes era tanto e que valia bastante a pena levar.

Naquele instante, a minha vontade de enfiar todos os sabonetes - tanto em barra quanto líquidos - goela abaixo daquele cara era maior do que a vontade de ir pra casa. Me perguntei, quase em voz alta, por que diabos essa gente teima em ser inconveniente ao ouvirem um não? Puta que pariu.

Ao chegar no caixa, achei que aquela função toda tinha finalmente chegado ao fim. Doce ilusão. A mulher do caixa foi de uma grosseria fora de série (então me perguntei por que eu estava me esforçando pra não transparecer a irritação) e queria porque queria que eu trouxesse um envelope de paracetamol pra casa. E eu dizendo que não, que precisava do dinheiro do troco.

Pisei na calçada e me senti aliviada, estava finalmente livre E rumando ao lar. Foi então que escutei aquela voz familiar dizendo"Boa noite, meu bem". Por dentro, eu tive vontade de chutar o banco onde ele estava tentando se equilibrar. Por fora, saiu aquele sorriso amarelo-pus e passos bem largos pra bem longe dali.


Fração de segundo

O tempo passa e todas as coisas continuam em seus devidos lugares. O espelho já não mais reflete a suposta alegria que antes era vista nas feições daqueles que por ali passavam... Lindos, elegantes, monocromáticos. Onde antes existiu recordações de frações de segundo emolduradas, hoje em dia dá lugar a vazios demasiadamente perturbadores que parecem estar intactos na memória de uns, mas são irrelevantes na memória de outros.

De tempos em tempos, frações de segundo são emolduradas em mármore, madeia ou ouro, com a finalidade de manter tais momentos vivos, deixando apenas o tempo se encarregar de levar as pessoas que um dia vivenciaram tais momentos para um lugar possivelmente melhor. Fotografias preservam a lembrança destas pessoas para os que ficam, habilmente iludindo seus observadores quando a saudade se torna quase que insuportável.

Quando uma daquelas molduras penduradas na parede da nossa vida se faz notar, pode nos remeter à infância que nunca tivemos, assim como pode nos envelhecer e trazer de volta à tona sorrisos que nunca foram nossos e nos fazer derramar lágrimas que jamais cogitaríamos derramar. Mas principalmente, nos faz recordar daquele momento em particular da nossa própria maneira, e entender a razão pela qual todas as molduras parecem intocadas pelo tempo.

A memória das pessoas naquelas fotografias continuam vivas enquanto são contempladas por nós, ou por aqueles que buscam alguma breve mas ainda assim imediata e vaga lembrança do que se passou. Como qualquer outra parede, esta desabará um dia, levanto muitas outras frações de segundo consigo que ficaram por anos a fio resguardadas dos olhos curiosos dos observadores mais detalhistas, nossos pequenos segundos secretos. Parede esta que só está de pé enquanto estamos aqui, vivos e que aparentemente ninguém consegue derrubar. Apesar de só se manter firme enquanto estamos presentes, em toda sua simplória magnitude são estes segundos que nos dá o que precisamos dia após dia: recordações de momentos, erros que cometemos e, consequentemente, lições que aprendemos.

Parede esta que somos nós, pessoas comuns que têm como a fundação vital as lembranças de momentos próprios, alheios, compartilhados e solitários emoldurados em sorrisos, lágrimas, palavras e gestos a cada fração de segundo.


Fazendo a diferença

Ganhar presentes é sempre bom mas o melhor é quando esses são dados e recebidos com tanto carinho, que é o caso desta singela bergamota-que-era-pra-ser-uma-laranja-mas-como-não-gosto-de-laranja-a-opção-foi-uma-bergamota. Ela, C-Berg (sim, ela tem nome agora!), deixou de ser uma frutinha qualquer e se passou a ser um laço importante de uma amizade que pretendo manter até que morte nos separe. Meio mórbido, mas há de chegar o dia que alguém precisará de uma bergamota dessas e somente então este mistério terá sido solucionado e certamente revolucionará o mundo.

Quantas pessoas nessa vida reclamam quando recebem um par de meias de presentes? Ok, ok! Esse par costuma a vir no plural, já que foi comprado numa liquidação de última hora e dependendo da qualidade, meias são artigos "descartáveis" pois gastam rápido demais. Quando elas já não servem mais, são passadas adiante em alguma campanha de arrecadação de roupas para os pobres, geralmente no inverno. Pro verdadeiro dono daquele parzinho de meias já mais socado que milho pra cavalo velho, claro que não passou de mais um presente babaca que gritava "As suas estão velhas e chulezentas, aí comprei umas novas para quebrar o galho por algum tempo!" mas, de verdade, já parou para pensar na felicidade da pessoa que vai receber esse par de meias usadas? Na faceirice dela que poderá dormir com os pés mais quentinhos no inverno, e que vai cuidar melhor de uma meia gasta do que você cuidaria de um par novinho?

Muitas perguntas além destas e uma única resposta: bergamota! Pode parecer estranho, mas aplique a teoria das meias velhas para armários, geladeira e estômago vazios há dias pra você ver como pequenos gestos fazem uma bruta diferença. Quando algum morador de rua lhe pedir dinheiro, negue. Negue, e logo em seguida se ofereça para comprar-lhe uma bergamota ou qualquer outro alimento. Nada se compara à faceirice de um estômago forrado de carinho e atenção! E pode ter certeza que aquele pouquinho, para quem estava passando fome, é muito melhor que a gororoba da mamãe.

Eu disse, não disse? Uma bergamota pode sim ser o início de uma pequena revolução em busca de pequenas soluções para grandes problemas do mundo. Por conta desse fato, eu declaro que "hoje", dia 03 de Agosto de 2007, é o Dia da Bergamota e que todas as pessoas devem presentear carinhosamente outras pessoas com bergamotas cheirosas, bonitas e com talinhos que tenham algumas folhas, façam elas parte de seu círculo social ou não.


Bicho da goiaba

Ninguém percebe, mas certos momentos na nossa vida são incrivelmente irônicos e eles começam mais cedo do que imaginamos. Apaixonar-se pela primeira vez faz a ironia perdurar por anos a fio, sem contar que é extremamente patético quando esta passa praticamente desapercebida aos olhos dos destreinados. E dos treinados também. Mas voltando à vaca fria, por que um primeiro amor é mais irônico do que aparenta? Porque você se apaixona pelo colega de classe mais bonitinho que tem no auge da sua infância, e aquela apaixonite platônica segue até o início de uma perturbada adolescência. Acontece alguma coisa que faz você perceber que o menino mais bonitinho não é assim tão bonitinho, que ele não é tão tudo como você fantasiou na sua cabecinha de girino e aí a coisa aperta.

Não, não é bem aí. Quando a confiança é depositada na pessoa errada, é quase igual à uma bexiga cheia aguentando o dobro do limite de cerveja combinado com um zíper que não abre. Aem contar o ataque de riso por causa do maldito faichecler que resolve não descer quando deve. Isso é quase uma Lei de Murphy disfarçada, confiar nas pessoas erradas e estas falam seu segredos justamente para a pessoa que não deveria ter conhecimento dos mesmos. Aí fede tudo, só não fode porque a coisa não pode ser tão explícita assim. E então você nota que o cara - até você se dar conta da burrada que fez em confiar em quem não merecia, deu tempo de ele crescer e os hormônios começarem a mostrar seus poderes externamente - não é aquele tudo que você voltou a achar que ele era, e começa a dar razão para sua mãe quando ela dizia que ele era parecido com um bicho da goiaba. Então o tempo passa, como sempre.

As primaveras passam e o número nas velinhas do bolo só tende a aumentar.Seria legal se diminuíssem e o cara continuasse a ser aquele menininho meigo que ficou chateado por você ter rasgado o convite do aniversário dele na frente dele, quando ambos tinham onze anos. Ainda assim, ele foi legal com você na festa e até o pai da criatura te tirou pra dançar. E apesar dos acontecidos no passado, as lembranças do bicho da goiaba são carinhosas e você começa a notar bem devagarinho que era feliz e não sabia. O tal bicho apodrece e a vida continua. e continua... Num determinado dia, você se depara com a tecnologia andando a seu favor quando não precisa mais disso. E todo aquele rebaixamento que sentiu quando ele descobriu da sua paixãozinha secreta por ele vem à tona, fazendo uma mistura de adrenalina e pânico verterem nas veias. O rumo que a conversa toma é diferente, vocês falam sobre como anda a vida e o que andam fazendo. Quase que uma filosofia e ele aparenta ser incrivelmente esperto para a idade que tem.

Ele parece ser o menino de cinco anos legal que você fantasiou quando tinha a mesma idade e que mesmo com espinhas no rosto e cabelo seco, continua sendo o cara dos seus sonhos. E bate aquele nervoso gostoso também, de finalmente ser forte o suficiente para quebrar a barreira do medo e trocar algumas palavras depois de quase nove anos. Minha nossa, e quando ele diz que lembra de você? Quase dá pra gozar!... Então a ironia toma forma e entra em ação: a falta de personalidade, de bom senso e de maturidade (já que na sua cabeça ele ainda tem cinco anos) começa a pesar, aí você lê a desculpa mais esfarrapada da sua vida quando pergunta porque ele não gosta de rock 'n roll: "eu jogo futebol, então sou pagodeiro".

Isso foi a gota d'água, sério. O zíper finalmente abre e você sente um alívio por não ter perdido dez anos da sua vida gostando de um cara de 20 anos que acredita em estereótipos e que tem uma mentalidade inferior ao seu primo que é seis anos mais novo que ele. Uma ironia deveras bombástica pois, de fato, você passou oito anos gostando desse jumento e ele realmente é bem nenos esperto que seu primo de doze anos: ao invés de pegar o dinheiro do trabalho pra pagar a faculdade, faz o pai pagar. Este não aguenta e o animal resolve trancar a matrícula e vai fazer cursinho pra ver se passa em outra porcaria qualquer de faculdade federal. E o jogo vira, pois as melhores cartas estão na sua mão e você tem o poder de fazer exatamente o que ele fez um dia: ignorar completamente sua existência. Então você abre o MSN, clica no apelido dele com o botão direito do mouse, vai em "excluir contato" e pra finalizar, marca a caixinha para bloqueá-lo. Pra deixar a situação um tanto quanto sarcástica, seu coraçãozinho sente pena quando relembra que ele disse que lembrou de você, sinal que fez parte da vida dele assim como ele fez da sua e não sabia. Ironias da vida, ainda bem que foi meio e não inteiro.

E tudo isso por causa do maldito rock 'n roll.


A carta

Querido amigo,

Entrei sem bater, e te procurei. A sala estava vazia, o quarto também. Então o cheiro do café recém passado impregnou minhas narinas, fazendo com que eu fosse até a cozinha para encontrar o bule na cafeteira ainda, meio vazio. Pensei comigo mesma, que talvez, numa mera possibilidade, você soubesse que eu apareceria de surpresa e deixou o café ali para que meu jejum fosse quebrado. Encostei o dedo no vidro, e notei que ainda estava quente. Peguei uma xícara do armário, sua xícara favorita, espero que não se importe. Havia um pote de geléia em cima da mesa, sujei a espátula limpa que estava recostada na borda do prato com uma fatia de pão de fôrma, também em cima da mesa. Comi o pão com geléia, e levei a xícara comigo.

Dirigi-me novamente à sala. Notei a poeira bastante espessa por cima dos móveis, o que deixava o ar também bastante empoeirado, então abri a janela para deixar o sol entrar. A luz que adentrava o cômodo brincava com a poeira que se estabanou no que a cortina fora aberta, e foi nesse ambiente que perambulei mais um tanto, entrando nessa brincadeira de poeira que não quer baixar. Olhei, demorada e detalhadamente cada foto em cima do balcão encostado na parede. Li seu bloco de recados e mexi na antena da televisão, me desculpe. Não era minha intenção adentrar tanto assim na tua privacidade, nem tinha esse direito. Estava prestes a dar meia volta em direção à cozinha quando notei o corredor. Nunca me ocorreu que aquele corredor fosse tão escuro.

Fui até ele, e não foi preciso tatear as paredes para achar o interruptor. A escuridão que tomou conta do meu ser era por demais reconfortante, mais do que eu achava que realmente seria. Deus, aquele corredor guarda tanto quanto um livro de memórias! O breu acalentou e, previamente, testemunhou do mais simples amor inúmeras vezes. Guarda rostos em breves passagens em busca do novo. Guarda, também, o que nunca fora dito por falta de necessidade. Nem sempre se faz uso das palavras para dizer alguma coisa, certas pessoas não precisam disso. Eu e você éramos exemplos vivos disso, mesmo naquela escuridão embriagadora. Os olhos se conheciam, e qualquer coisa além disso era futilidade. Era, passado, passei, voltei.

Ao retornar para a sala, deixando o corredor, sua escuridão, seu passado e as vagas lembranças pra trás, notei que a poeira havia baixado e parado de brincar com a luz que ainda invadia o local através do vidro da janela. Será que cansaram de esperar por mim, assim como aconteceu com você? Tomei seu lugar no sofá por alguns instantes, e o corredor teimava em me prender. Decidi ir, de vez, sem deixar vestígios que não fossem pela tua xícara predileta - me desculpe por isso, assim como pelo resto -, prato e bule, agora vazios, e a espátula suja na pia. Corri os olhos pelo cômodo, ainda vazio, e impregnado pelo cheiro da poeira e do seu perfume. Minha mente encaixou fragmentos do que jamais ousou existir naquele pedaço escuro de sua moradia.

Levantei-me. Escrevi uma breve palavra naquele bloco marcado por sua letra, já disse que não precisa apertar tanto a caneta contra o papel. Por sua teimosia, acabei por descobrir o que não queria. Repousei a chave que usei para roubar seu espaço, ainda que sem bater, pois nunca fora de meu feitio usá-la. Andei até a janela, e abri o vidro para revigorar o ar e não deixar traços de que usufrui da sua falta para acomodar minhas lembranças. Seu perfume contra o meu, sua pele contra a minha eram coisas que não mais existiam. Fui até a cozinha, e lavei a louça que usei. Coloquei o prato onde o encontrei com uma outra fatia de pão, e a espátula também. Notei que a xícara estava trincada - teria sido eu em momento de descuido? Será que seus olhos notariam tal deformidade? Coloquei-a de volta em seu lugar de descanso.

Perceberá, também, que falta um filtro de café dentro da caixa. Marquei mais um xis em vermelho no calendário da cozinha, acima do dia de hoje, como é de praxe quando mais de um filtro é usado. Coloquei pó de café e água nos espaços designados na cafeteira. Sim, deixei café pronto para suprir sua necessidade mais tarde. Abri a porta apenas o tanto que era suficiente para que meu corpo passasse, e hesitei em fechá-la, em deixar tudo aquilo pra trás. Mas era preciso fazê-lo, mais dia, menos dia.

Ao regressar de onde quer que tenha ido, terá um ar renovado, sem resquícios de minha presença em sua vida. Terás esquecido que temo a escuridão que ainda banha parte de mim, e que você, por breves momentos, iluminou com sua breve passagem pela minha vida. Sem poeira para chacoalhar, sem nada. Espero, de todo o meu coração, que volte renovado e que tenha deixado de lado todas as tuas aflições que, naquele dia, fizeram com que eu me afastasse. Desculpe-me, não só por roubar e fazer uso de sua vida durante sua ausência, mas também por não ter força o suficiente para ficar ao seu lado.

Quero que você volte, que sinta esse ar e que lembre de tudo assim como aquelas quatro paredes.
Quero que você volte, seja quando for ainda que só para dizer adeus. Descobri que é isso o que realmente deseja.

Muito obrigada pelo café. Tenha uma boa vida.


A troca

Quero mantê-lo em uma caixa, em uma caixa
Com tampa e cadeado.
Te asfixiar em meu mundo ao mesmo tempo que,
De fora observarei, observarei com meus olhos negros
Tua excitação plena ao embebedar teus pulmões com ar puro.
Teu coito verbal em meio à nossa loucura,
Teu nirvana de fronte à tua própria sombra em meio a estrondos sobreumanos.

Quero ser a caixa, teu mundo
Teu mundo livre de falsa liberdade
O sim do teu não,
O benefício da tua dúvida e
A golfada de ar que ao mesmo tempo que te alivia, te mata.
Tuas ásperas palavras, desesperadas ao pé do ouvido;
Teu barulho na inerte explosão.
Teu momento entre as pernas,
Tua hora de voltar à vida.


Imaginário

Quatro cantos. Linhas imaginárias ou paredes metodicamente texturizadas. Pouco importa as goteiras que implicam com o assoalho que perdeu a conta de quantos passos segurou em anos, e agora está lá, largado às traças. O homem não se importa. Vidraças quebradas que empurram a tímida sinfonia do vento para dentro daquele imenso salão onde a porta, que não tem maçaneta, repousa tranquila contra a parede sem ser importunada nem sabe que é a próxima a ir para a lareira. A madeira podre dos degraus impede o acesso ao segundo andar. O homem nã se importa com a falta do teto, nem com as goteiras.

Proteção dúbia para diferentes fúrias e perigos em uma arquitetura hoje desforme que salva almas de merecidos castigos. O homem não vê as coisas como são. Quieto perto da lareira que agora incendeia a porta que repousava contra a parede, saboreando sua caneca de vinho, ele observa os pássaros que fazem das poças criadas pelas goteiras suas fontes. Um punhado de jornais precisamente organizados no chão são sua cama, cama de rei como ele diria. A velha panela com comida enlatada estragada é seu banquete. Ele não espera companhia, mas as outras duas canecas estão ali esperando pacientemente serem usadas.

O vento e sua sinfonia formam a orquestra. E a música inicia novamente e, logo que ele levanta para quebrar mais alguns pedaços da porta, o homem sente suas pernas serem abraçadas por pequenas formas de braços e mãos. O sorriso que espreita da porta da frente antes de ser fechada, ilumina como um lustre de cristais, e o lembra que "lar é onde o coração está", e seu coração está naquele pequeno abraço e naquele aconchegante sorriso.

E então, com a vista perfeita e os convidados à mesa, o homem dá início Baile de Inverno em uma fria noite de primavera.


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